O
Doping das Crianças
O que o aumento do consumo da
“droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit
de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?
por Eliane Brum
Um estudo
divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e
aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o
consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes
Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6
aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de
TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou
ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo
semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que
há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com
atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e
psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da
obediência”.
O boletim da
Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um
problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para
vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é
a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é,
entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por
que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o
estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros,
concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o
medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles
profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em
2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da
obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e
16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.
A TDAH seria um
transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças
no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8%
. Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar
dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada;
parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao
fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser
incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de
brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez;
interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.
Um parêntese. A
droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que
ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém
que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim
como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional,
utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho
em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para
uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de
TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de
consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.
Entre as
considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de
Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:
- Os dados
demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que
precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é,
somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os
pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato
tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada,
sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do
desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os
Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre
adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças,
afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento
deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio
comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais,
sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação
pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem
atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o
desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de
medicamentos.
O documento pode
ser lido na íntegra aqui.
Além do
questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser
colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar
cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente
de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes
considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma
espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há
uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?
A controvérsia
sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população.
É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é
“hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser
resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela
significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas”
inquestionáveis.
Na realidade, os
questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal
feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a
doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria
farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o
outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações
sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da
medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto
um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet.
O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada
de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.
1) A medicina e a
definição da “normalidade”
A história da
medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças
para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o
universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a
vida. Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação,
higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças.
Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”,
afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante,
intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as
Políticas de Formação Docente” (Leia aqui)
“Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de
normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas
para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem.
(...) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que
o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso
médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento –
está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”
A medicalização,
segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e
humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou
distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a
criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É
assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e
políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a
existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma
intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação
medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no
pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios
e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em
que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso
médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina
constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a
consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como
instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento,
a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças
significativas, apenas estendendo seu campo normativo”.
Em “Os Equívocos
da Infância Medicalizada” (Leia aqui),
Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com
doutorado em educação,
explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.
explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.
2) A escola e o
ciclo da medicalização da infância
O caminho que leva
ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais
pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das
dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou
adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao
problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre
as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é
semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à
vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao
neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.
Esta é a análise
da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do
Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia
hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do
Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de
São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância:
Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela
afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no
campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as
clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica
sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na
principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais
realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina,
juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede
de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e
sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”
É corriqueiro,
segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos
por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos
habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência
da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais
elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais,
mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses
pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico
nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita
de um acompanhamento’”.
A psicóloga Renata
Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo
intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e
Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou
de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina
passou a determinar quem era “educável ou ineducável” (Leia aqui):
“Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela
constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de
seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados
para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e
de ‘treinamento’”.
Em sua análise,
Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que
professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados
comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação
psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina
professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em
tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos
nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é
responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças,
e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no
interior do cotidiano escolar. (...) Ao assumir e validar o discurso
médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma
prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas
famílias por seus fracassos”.
3) A criança como
objeto, não mais como sujeito
Entre as
principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de
medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da
obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na
sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num
contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo,
sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e
adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e
professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico
e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de
vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os
propulsores do ato de educar.
Em O Livro
Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista
Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos
para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”.
Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este
gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se
apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades
que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado
ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito.
(...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É
uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação
terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido;
um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das
categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não
Nos Invejam Mais”, que pode ser lida aqui
Em artigo já
citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e
adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas
até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde
ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por
sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em
relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em
larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao
silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro
humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de
recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que
o lugar do ato educativo seja redefinido.”
Em
“Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo
da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da
Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora
da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição
de um caso concreto (Leia aqui).
Elas afirmam : “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos
professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico
de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para
lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste
planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a
criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como
consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada,
tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já
que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.
4) Ninguém se
responsabiliza – ou por que a medicalização prospera
Não é apenas a
escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado
como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma
vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao
introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um
transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de
realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito
Refém do Orgânico” (Leia aqui),
Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua
implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para
atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um
efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que
saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado
descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste
órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que
ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais
sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana,
dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos
história”.
Margareth Diniz
analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela
reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo
acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se
conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais
de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar
científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A
ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes
são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena
a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe,
que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem
furos”.
Não são apenas os
professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento
para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil
lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao
funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que
escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento.
“Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas
indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos
de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de
hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los
‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da
obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando
conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou
de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.”
5) O marketing da
indústria farmacêutica
O transtorno de
hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o
diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a
existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste
sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina,
na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno
obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima
e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e
imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente
proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria
contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que
foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em
uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo
Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.
“A produção de
saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria
farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O
consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da
indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder
médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata
Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com
fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando
espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea
promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à
bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão
não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o
remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma
etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem
consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento
bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”
*******************
Estes cinco pontos
são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a
disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento
dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de
espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está
naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores
também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar
suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria
diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.
Ninguém sabe quais
serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro
em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração
legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos
no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar
escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os
adultos?
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/02/o-doping-das-criancas.html?fb_action_ids=295430683917321&fb_action_types=og.likes&fb_source=aggregation&fb_aggregation_id=288381481237582
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