Somos vários tons de mulheres no
universo erótico
Com
gancho no sucesso de Cinquenta tons de cinza, a psicóloga Marília Santos, que mora em Londres, fala de
mulher e sexualidade.
Londres
é cinquenta tons de cinza, no céu e na terra. No céu, muitas nuvens. Na
terra, várias londrinas lendo Fifty Shades of Grey. O livro começou a
ser falado por aqui no fim do ano passado. E rapidamente virou um
fenômeno global. É comum ver mulheres lendo como se fossem crianças empolgadas
com o último volume do Harry Potter. Também virou moda contar que se
está lendo o livro, compartilhar no Facebook, Twitter ou adicionar
ao Pinterest. Não são apenas mulheres jovens que têm tido contato com Christian
Grey. Foi publicado há algumas semanas pela organização inglesa Calibre, que
envia livros de áudio para pessoas com dificuldade de visão, que senhoras
aposentadas de mais de 70 anos são as que mais encomendam a versão áudio de
Cinqüenta Tons de Cinza.
Antes
de eu ler o livro, ouvi a opinião de duas amigas inglesas. Uma havia amado. A
outra…odiado! O mesmo com duas amigas brasileiras: uma só falava nisso, a outra
só falava mal disso.
Resolvi
conferir. Baixei a trilogia no Kindle. Li o primeiro livro e o achei
legalzinho, mas mal escrito. E não gostei dos personagens. Li o segundo livro,
mas pulei diversas páginas, pois minha sensação foi de que a autora copiou e
colou o que já havia escrito antes. Quando passei para o terceiro volume perdi
o interesse então, mais rebelde, comecei a pular capítulos. Não agüentava mais
ouvir sobre a tal “deusa interior” de Anastácia Steele.
Os personagens
são mesmo inconsistentes: Anastácia não convence com sua contrastante
personalidade inocente e inteligente, assim como Grey, com sua atitude egoísta
e controladora e seus conflitos infantis. Achei tudo
forçado. Para falar a verdade, o que eu gostei mesmo foi da trilha
sonora. Esse livro vai dar um bom filme.
Pra
muitos, o livro virou piada. Já ouvi gente falando de cinqüenta tons de
cabelos, cinqüenta tipos de salmão e cinqüenta escovadas de dente. Um amigo me
mostrou um site em inglês chamado Generator, que cria frases
baseadas nas passagens do livro. Quando você clica na opção “gerar”, o site
gera palavras ao acaso que, numa frase semelhante às descrições eróticas da
historia, ficam engraçadíssimas.
Dou
risada disso, mas sou consciente de que o livro foi um grande fenômeno no
aspecto social (a risada aqui é séria). L.E. James definitivamente contribuiu
para as mulheres se sentirem mais confiantes ao falar sobre literatura erótica.
Na
época em que eu li Delta de Venus, da Anais Nin, uma escritora francesa de
erotismo dos anos 40, eu não andava com o livro por aí. Não queria que as
pessoas soubessem que eu o estava lendo. Se naquela época já existisse o
Kindle, talvez Delta de Venus tivesse passeado por Porto Alegre, mas eu o
limitei às quatro paredes do meu humilde quarto. Hoje em dia, com os
e-readers, temos a opção do discrição. Mas o fenômeno da
literatura erótica está indo além dos e-readers. As mulheres estão
carregando os livros por onde andam. Elas podem, elas querem mostrar.
Vejo
o universo feminino encontrando seu espaço num mundo que já foi tão modelado
para o masculino. Que bom que E. L. James contribuiu favoravelmente com a
emancipação da leitura erótica. Há mais por aí. Há poucas semanas, na Feira
do Livro de Frankfurt, na Alemanha, houve uma venda incrível de livros de
ficção erótica. O livro S.E.C.R.E.T, de um canadense cujo pseudônimo
é L.M. Adeline foi um dos livros mais vendidos e está sendo comparado ao
Cinqüenta Tons de Cinza – embora mais desenvolvido literariamente. Além
das novidades que estão aparecendo por aí, recomendo o que já está há algum
tempo no mercado, como os livros franceses Delta de Vênus, da Anais Nin, que
mencionei antes, e A vida sexual de Catherine M., da própria Catherine Millet.
São bem escritos e os personagens bem mais interessantes.
Sei
que ao lerem minha crítica negativa de Cinqüenta Tons de Cinza, algumas
mulheres dirão: gosto não se discute. E talvez essa seja mesmo a alma do
negócio. Essa diversidade fará as editoras investir em livros. Que ótimo
podermos discutir abertamente opiniões nessa área (online ou face to face)
enquanto que a maioria das nossas mães e avós jamais poderiam.
Pergunto-me
se o mesmo acontecerá na indústria de filmes eróticos e pornôs. A
escritora e jornalista inglesa de quem sou fã, Caitlin Moran, diz
que a indústria pornô é um problema. O filmes são
voltados para o mundo masculino e extremamente mecânicos, como se as pessoas
estivessem fazendo aula de aeróbica - só que nus. A mulher geralmente
aparece mostrando que está gostando daquilo de uma forma exagerada, com
gritos escandalosos que caberiam mais a um filme de terror do que em algo
sensual e excitante.
Há
na indústria de filmes eróticos poucos feitos especialmente para mulheres, como
os da americana Candida Royalle. No entanto, eles geralmente são tediosos,
estilo Cinderella ou Branca de Neve para adultos (com todo respeito a quem
gosta de gata borralheiras e dos sete anões). Poucos filmes feitos para
mulheres mostram historias reais parecidas com as que vivemos, como os da
cineasta sueca Erika Lust, que ganhou várias vezes o Feminist Porn Award, o
Oscar desse gênero. Ela parece estar modificando a indústria, mas precisamos de
mais mulheres se dedicando a essa área.
Muitos
meninos da minha geração começaram a consumir pornografia no início da
adolescência. É culturalmente aceito. Já as meninas? Pouquíssimas, se é que
assistem. De um lado, meninos achando que sexo selvagem e brutal é a forma
“certa” de transar. De outro, meninas fantasiando um amor romântico.
Ultimamente, no entanto, tenho escutado que meninas adolescentes dessa geração
têm assistido mais a vídeos pornôs sozinhas (devido ao crescente e fácil acesso
a vídeos na internet). Mas é árduo aceitar que ambos estão se educando por essa
via, pois o sexo que é apresentado ali não é informativo e apropriado para quem
está iniciando sua vida sexual cheio de duvidas. Se é sabido que adolescentes
vão assistir a vídeos pornô de qualquer forma (pois são adolescentes e a
curiosidade sexual impera), deveriam ter acesso a algo que ensine mais sobre a
sexualidade feminina. As meninas acabam muitas vezes se forçando a fazer coisas
que não querem, tendo como referência a atuação das atrizes pornô.
Não
poderia ser diferente? Há muitos educadores sexuais, psicólogos e outros
profissionais refletindo mais sobre isso atualmente, mas ainda não vejo muitas
mudanças. Acredito que as próximas gerações de mulheres terão cada vez
mais opções e informação útil nessa área, mas entendo que para que isso realmente
ocorra precisamos ser menos resistentes em falar no assunto.
Percebo
as mulheres de hoje cada vez mais verdadeiras em relação à
sexualidade. Vejo que há um interesse real em compartilhar o que é ser
mulher, com menos machismo, mais humor e curiosidade. Observo isso entre
amigas brasileiras e inglesas, assim como amigas de outras nacionalidades
ocidentais. No livro Como ser Mulher, que há pouco foi
traduzido para o português, Caitlin Moran discute vários assuntos do universo
feminino, de seus treze anos até a idade adulta. É um manifesto divertidíssimo
em que ela relata sua experiência em relação a assuntos como masturbação,
estética, relacionamentos, trabalho, filhos e aborto, encorajando outras
mulheres a questionar suas próprias ações e valores. É uma feminista
inglesa com um ótimo senso de humor. Quando digo “feminista” aqui me
refiro a tal palavra não como uma guerra de sexos, ou uma tentativa de querer
afirmar que a mulher é superior ao homem. Talvez boa parte das
brasileiras discorde da opinião de Caitlin em alguns temas. Depilação, por
exemplo, ela considera um sofrimento desnecessário.
Percebo
também que, para muitos homens, é um alívio ter uma mulher ao lado que seja
honesta no que realmente quer, que se interesse em investir em sua sexualidade
assim como em desenvolver seu cérebro. Isso, de certa forma, alivia a cultura
machista, assim como nossa cultura de ser muito feminina, mas pouco
feminista. Casais que vivem relações onde os papeis são mais flexíveis parecem
ser mais saudáveis.
Para
criarmos mudanças positivas, com direitos comuns, e para que a sexualidade
feminina seja mais bem compreendida, temos que ter menos medo de debater
sobre temas como a indústria erótica e pornô, onde ainda estamos jogando como
reservas e não como titulares. Se levarmos isso a sério, estaremos
fazendo um bem enorme às mulheres de hoje e às futuras gerações de meninas.
Espero que, ao ler Cinqüenta Tons de Cinza, esses milhões de mulheres descubram
cinqüenta (ou mais) tons de mulheres dentro de si. Se um dia Freud perguntou o
que as mulheres querem, acho que agora podemos responder: não
saibamos tudo o que queremos, mas estamos em processo de
criação daquilo que já sabemos que queremos”.
De
certa forma, sempre foi um pouco assim, não?
Fonte:
http://colunas.revistaepoca.globo.com/mulher7por7/2012/10/27/somos-varios-tons-de-mulheres-no-universo-erotico/