Hanne
Blank: "Não há só duas orientações sexuais"
A historiadora diz que a
definição do conceito de hétero e homossexualidade aumentou o preconceito ao
enquadrar os comportamentos sexuais
Por Tonia Machado
A historiadora americana Hanne Blank, de 43 anos,
viveu um relacionamento de 15 anos com uma pessoa que, geneticamente, não é
homem nem mulher. A história da constituição cromossômica XXY de seu parceiro e
o fato de ele não se encaixar, cientificamente, em nenhuma das categorias
sexuais existentes é contada por Hanne no início de seu novo livro. É sua
maneira para introduzir uma ideia polêmica. Em Straight: the surprisingly
short history of heterosexuality (Hétero: a curta e surpreendente história da
heterossexualidade), sem edição no Brasil, ela diz que a criação das
palavras “heterossexualidade” e “homossexualidade”, no século XIX, mudou nosso
comportamento. “Até então, não se pensava se alguém era gay ou hétero”, diz.
ÉPOCA
– É possível identificar com precisão quando as palavras hétero e
homossexualidade foram criadas?
Hanne Blank – A definição desses
termos foi uma ideia ocidental que, como muitos outros pensamentos, foi
transmitida a outras partes do mundo pelo imperialismo cultural. As duas
palavras foram criadas numa carta escrita, em maio de 1868, pelo jornalista
austro-húngaro Karl-Maria Kertbeny. Ele se colocava contra uma lei alemã de
1851, que punia homens que mantivessem relações com outros homens. Segundo ele,
não era justo condenar o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo,
quando os mesmos atos físicos eram realizados por pessoas de sexos diferentes
sem que houvesse nenhuma consequência legal.
ÉPOCA
– Há referências milenares a comportamentos homossexuais. Por que a demora em
criar uma definição?
Hanne – É claro que a hétero e a
homossexualidade sempre existiram, mas, simplesmente, não eram identificadas.
Essa é a questão crucial. As pessoas não pensavam se alguém era gay ou
heterossexual e se esse fato fazia dele um tipo diferente de ser humano. Todo
mundo sabia que havia comportamentos sexuais diferentes, mas não existia a
noção de orientação sexual. Alguém poderia ter desejos sexuais diferentes ou
envolver-se em diferentes tipos de atos sexuais. Esses atos poderiam ser
considerados lícitos ou ilícitos, castos ou pecaminosos. Mas esses juízos de
valor eram feitos sobre desejos e atos específicos, nunca sobre a pessoa. Isso
só aconteceu com a criação da palavra.
ÉPOCA
– Por que a criação dos termos transferiu valores antes associados a desejos
sexuais para a pessoa?
Hanne – Diferentemente dos animais, ser
heterossexual para um humano envolve muito mais que o comportamento sexual
entre machos e fêmeas. Os seres humanos têm um aparato social enorme ao redor
de sua sexualidade. Não se trata somente de genitálias ou do que você faz com
elas. Há um enorme pacote de atitudes que inclui desde a definição do que é
sexy para um homem e para uma mulher até casar, ter filhos, assumir
responsabilidades na administração da família. Até a definição de amor está
associada à heterossexualidade. Para nossa cultura, é natural que, se você se
sente atraído por alguém do outro sexo, terá prazer com ele e vai querer estar
com ele. A criação de um termo conseguiu condensar e traduzir numa palavra todo
esse aparato social em torno da sexualidade, partindo do tipo de ato sexual. É
muito conveniente e fácil usar uma única palavra que signifique, sustente e
contenha tantas expectativas, tradições e presunções sobre as pessoas e como
elas deveriam se comportar. Se, todas as vezes em que fôssemos falar de
heterossexualidade, tivéssemos de fazer uma grande lista sobre tudo o que ela
envolve, ficaríamos nisso o dia todo!
ÉPOCA – O mundo era mais amigável aos gays até o século XIX, antes
de Kertbeny criar os termos hétero e homossexualidade?
Hanne – Antes de 1868, o comportamento das pessoas em
relação à heterossexualidade era diferente. Houve lugares e épocas em que o
sexo entre homens era aceito. Não era considerado um problema. Um exemplo muito
famoso é a Grécia Clássica. Durante a era medieval, também havia bastante
homossexualidade feminina e masculina na Itália. Mesmo sendo um país bastante
católico, muitos homens faziam sexo com outros homens. Um exemplo de como isso
era comum: em 1403, em Florença, os padres decidiram abrir um bordel municipal
para que os homens parassem de ter relações homossexuais e se relacionassem com
prostitutas. Isso mostra que a Igreja certamente não aprovava a
homossexualidade e que a cidade poderia estar incomodada com isso. Mas, claramente,
havia muita gente que não tinha problema em praticar sexo homossexual. O tabu
era assumir o papel passivo, porque equivalia a dizer: “Sou uma mulher, porque
sinto prazer como uma”.
ÉPOCA – Em sua opinião, a criação de palavras para definir gays e
héteros reforçou o preconceito?
Hanne – Há ideias tão profundamente entranhadas na maneira
como construímos nossa vida que raramente as questionamos. Elas estão lá desde
que nascemos. Foi isso que a criação dos termos fez com a orientação sexual. A
partir do momento em que a heterossexualidade se tornou um consenso, passamos a
não questioná-la. Nós a enxergamos como algo normal sobre o qual não precisamos
falar – é um conhecimento que temos e presumimos ser evidente. O conceito de
hétero e homossexualidade não foi criado com base em princípios científicos,
mas sim sociais.
ÉPOCA
– A senhora acredita que, se essa definição partisse da ciência, a
homossexualidade seria bem-aceita pela sociedade?
Hanne – A ciência tem muita influência e
muita autoridade perante a sociedade. E essa é uma das razões de ela continuar
procurando evidências físicas para a sexualidade ou a orientação sexual. Seria
muito conveniente se a ciência dissesse: “Isso é o que faz com que alguém seja
homossexual. Agora sabemos de onde vem”. A partir daí, teríamos uma resposta
para o questionamento de por que alguns querem uma coisa e outros querem coisas
diferentes. Se houvesse alguma resposta física conveniente para essa questão,
então não precisaríamos mais perguntá-la.
ÉPOCA – A
ciência não deu sua contribuição para o preconceito ao considerar, até 1977, a
homossexualidade como uma doença mental?
Hanne – Isso
começou com o livro Psycopathia sexualis, de 1886. Ele catalogava os
diferentes tipos de desvios e degenerações sexuais. Foi usado principalmente
nas esferas legais, para ajudar os profissionais da Justiça a identificar esses
comportamentos. Nesse livro, o termo “heterossexual” foi usado como uma forma
de comparar o que era uma degeneração e o que não era. O comportamento
“heterossexual”, ou “normal sexual”, era todo aquele que não estivesse no livro
e envolvesse a relação sexual entre um homem e uma mulher feita pela penetração
do pênis na vagina. Qualquer coisa diferente disso era uma forma de degeneração
ou doença.
ÉPOCA –
Esses parâmetros aumentaram a pressão sobre os
homens para provar sua “normalidade”?
Hanne – Havia, e
ainda há, uma grande pressão para eles demonstrarem seu valor. Uma das maneiras
como os homens historicamente provaram isso, especialmente desde o século XIX,
foi mostrando que são sexualmente normais, saudáveis, não degenerados, que têm
os mesmos desejos que todos os outros homens, que são “um dos caras”. E essa se
torna uma maneira muito importante de afirmar sua identidade e autoridade, como
homem merecedor de fazer parte desse grupo.
ÉPOCA – É
difícil acreditar que a criação de uma palavra seja capaz de alterar
radicalmente a percepção da sociedade. Há um contexto histórico que ajude a
explicar essa transformação?
Hanne – No fim
do século XIX, houve uma intensificação da urbanização. Nas cidades, pessoas
com diferentes hábitos, culturas e condições financeiras passaram a conviver
pela primeira vez. A elite passou a culpar as classes menos instruídas pelos
problemas da cidade: crimes, prostituição, alastramento de doenças venéreas e
até mesmo pela feiura das partes pobres das cidades. Essa convivência entre
classes gerou uma distorção nos pensamentos evolucionistas de Darwin. Passou-se
a acreditar que os pobres eram seres menos evoluídos. Junto disso tudo também
surgiu a ideia de que a sexualidade das pessoas, o que elas desejam e o que
fazem também são parte do que as faz evoluídas ou não.
ÉPOCA – A
senhora acredita que não é possível criar uma definição para
heterossexualidade?
Hanne – Existem
muitas definições, e elas mudam com o tempo. Como historiadora, procuro
analisar o comportamento das pessoas ao longo da história. Posso garantir que
mudam muito. A sexualidade humana se dá de maneiras diferentes. O fato de
querermos nos relacionar com outros seres humanos, independentemente do sexo, é
algo normal. Como existem muitos tipos, e tão amplos, de experiências, não acho
que seja possível definir tão estritamente a orientação sexual em somente duas
categorias.
ÉPOCA
– Como a senhora define sua orientação sexual?
Hanne – Não sou heterossexual, nem homossexual,
nem bissexual. Vivi 15 anos com uma pessoa que, geneticamente, não é homem nem
mulher. E não há um termo para alguém que esteja num relacionamento com uma
pessoa que não é homem nem mulher. Gosto de masculinidade, mas não
necessariamente em alguém que seja biologicamente um homem. Em minha vida, já
me relacionei com pessoas de todos os tipos de biologia. Do que gosto e o que
me atrai é a masculinidade. A biologia da pessoa não é um problema para mim.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/09/hanne-blank-nao-ha-so-duas-orientacoes-sexuais.html