O peso das emoções
Não é a fome física que atormenta os comedores
compulsivos. Em geral, lacunas emocionais desencadeiam o vício pela comida. E
não adianta só a dieta. É preciso cuidar da mente
Desde a infância, o significado da comida vai além de sua função nutricional.
Os alimentos fazem parte de reuniões sociais, das comemorações e são lembranças
para toda a vida. A associação afetiva com a comida faz com que muitos busquem
nela um refúgio nos momentos de tristeza, de ansiedade ou de raiva. Apesar de
comum, porém, o comportamento pode tornar-se perigoso quando recorrente e, nos
casos mais graves, pode levar ao desenvolvimento do chamado transtorno da
compulsão alimentar periódica (TCAP).
A correlação entre comida e emoções é química. "Do ponto de vista
neurológico, sabe-se, atualmente, que aqueles circuitos responsáveis pelo
comportamento alimentar estão relacionados com aqueles que modulam, por
exemplo, as emoções", explica Celso Alves, psiquiatra do Programa de
Atenção aos Transtornos Alimentares (Proata), da Universidade Federal de São
Paulo. A compulsão pela comida, no entanto, também é determinada por fatores
genéticos, psicológicos e sociais. Baixa autoestima, dificuldade de impor
limites, pouca flexibilidade, raciocínio extremista e impulsividade são traços
comuns dos comedores sem controle.
Há uma forte sobreposição entre compulsão alimentar e transtornos de ansiedade
e depressão. Alguns dados indicam que pelo menos a metade dos compulsivos são
também depressivos, como explica Maria Angélica Nunes, psiquiatra do Grupo de
Estudos e Assistência em Transtornos Alimentares (Geata). A associação de
transtornos cria um ciclo vicioso e dificulta a cura. O compulsivo sente-se
insatisfeito com o próprio corpo e busca uma compensação na comida, o que o faz
sentir-se culpado. "A sensação de perda do controle alimentar pode
desencadear um episódio depressivo, o qual, por sua vez, é um gatilho para
novos episódios de compulsão alimentar", explica Celso Alves.
A doença se caracteriza basicamente pelo hábito de ingerir grandes quantidades
de alimentos em um curto período de tempo. Durante esses episódios, as pessoas
comem mais rápido do que o habitual e sentem vergonha e culpa no fim.
"Alguns portadores de compulsão alimentar relatam que a sensação é a de
que não são eles que fazem aquilo. É como se estivessem dissociados",
afirma Celso Alves. Uma vez que o ataque começa, muitos só conseguem parar
quando não há mais comida.
O sinal de alerta está na frequência com a qual se recorre a alimentos para
lidar com frustrações e à intensidade dessa necessidade. "As compensações
prazerosas, pela alimentação — ou por outros meios, como comprar, jogar, se
exercitar ou fazer sexo —, podem até ser consideradas aceitáveis. Porém, a
recorrência delas é que o torna o comportamento patológico", esclarece o
psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo, coordenador do Grupo de Estudos em Comer
Compulsivo e Obesidade (Grecco), do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina, da Universidade de São Paulo.
O vício pela comida se torna muitas vezes tão frequente que o indivíduo não é
mais capaz de diferenciar quando sente fome ou apenas vontade de comer alguma
coisa. Apesar de haver uma preferência por alimentos ricos em carboidratos,
como pães e doces, muitos querem apenas livrar-se da ansiedade. "As
pessoas com compulsão alimentar, com frequência, relatam não sentir fome, mas
uma necessidade intensa de comer, de colocar algo na boca numa tentativa de
atingir algum alívio emocional ou quando estão entediadas", afirma o
psiquiatra Celso Alves.
A relação com a alimentação e o desenvolvimento de hábitos saudáveis começa na
infância. As memórias infantis e os padrões estabelecidos nessa fase ecoam na maturidade.
"Nossas escolhas alimentares enquanto adultos também são influenciadas
pela memória afetiva que desenvolvemos quando crianças. Aprendemos a saborear e
escolher os alimentos não só por motivos racionais", esclarece Alexandre
Pinto Azevedo. No caso dos comedores compulsivos, a relação se torna ainda mais
primitiva e no momento dos episódios de excesso alimentar, a memória
afetiva-alimentar comanda as escolhas.
Hora de decidir e mudar
O servidor público Maurício Guedes, 34 anos, chegou a pesar quase 150kg. Além
do incômodo com o excesso de peso, descobriu que tinha esteatose hepática, um
acúmulo de gordura nas células do fígado, que pode levar à cirrose hepática.
Maurício cogitou se submeter à cirurgia bariátrica, mas descartou a
possibilidade por acreditar que, mais do que transformar o corpo, era
necessário cuidar da mente. Ele buscou muitas formas de alcançar ao peso ideal,
mas a dificuldade em mudar os hábitos impedia a manutenção do resultado.
"A pessoa emagrece e sente que deve ser recompensada. E qual a recompensa?
Comer mais. É a ideia de que, agora, você pode comer o que você quiser porque
já emagreceu. E volta tudo de novo", opina. Com o objetivo de mudar o
estilo de vida e melhorar a saúde, ele começou o tratamento no Centro Terapêutico
Dr. Máximo Ravenna (veja quadro). De junho a outubro, foram 35kg a menos e a
meta é perder mais 15 até o fim da terapia. Para Maurício, o grupo terapêutico
é essencial para fortalecer o compromisso com o tratamento. "Você vê as
pessoas na mesma situação, entra em sintonia e se sente responsável pelo
grupo", afirma.
Não foi fácil. Antes, os momentos de lazer contavam sempre com a presença da
comida. Quando ia chamar os amigos para sair, a escolha era um bom restaurante.
Hoje, ele busca o prazer em outras atividades, como leitura, teatro e shows. Se
come fora, não sai da dieta. "Não tenho a mesma compulsão. Quando você
começa uma reeducação alimentar, se sente muito bem com seu estado físico e
começa a ter disposição para outras coisas."
Você é um comedor compulsivo?
O CCA desenvolveu uma série de perguntas para ajudar a descobrir se é momento
de pedir ajuda. Membros do grupo responderam afirmativamente à maioria das
questões. Não é um teste decisivo, é apenas um modo de orientar a identificação
de comedores compulsivos.
01. Você come quando não está com fome?
02. Você faz "farras alimentares" continuamente,
sem razão aparente?
03. Você sente culpa e remorso depois de comer
compulsivamente?
04. Você gasta muito tempo comendo ou pensando em
comida?
05. Você espera com prazer e antecipação pelo
momento em que pode comer sozinho?
06. Você planeja com antecedência essas comilanças
secretas?
07. Você come sensatamente em companhia de outras
pessoas, compensando depois, quando está sozinho?
08. Seu peso está afetando seu modo de viver?
09. Você tentou fazer dieta por uma semana (ou
mais), somente para abandoná-la perto de sua meta?
10. Você fica ressentido quando outras pessoas lhe
dizem para "usar um pouco de força de vontade" para parar de comer
demais?
11. Apesar das evidências em contrário, você
continuou a afirmar que poderia fazer dieta "por si mesmo", quando
quisesse?
12. Você anseia desesperadamente por comer em um
determinado momento, dia ou noite, fora das horas das refeições?
13. Você come para fugir de aborrecimentos ou
dificuldades?
14. Você já esteve em tratamento por obesidade ou
problemas relacionados à alimentação?
15. Seu comportamento alimentar faz você ou outras
pessoas infelizes?
Entenda o método Ravenna
Inicialmente, são cortados os carboidratos refinados da dieta. E, em pequenas
medidas, são permitidos alimentos de baixo índice glicêmico, entre proteínas,
frutas, verduras e laticínios. Para aliviar a vontade de comer doce, o paciente
pode tomar refrigerante zero e comer gelatina, em quantidades permitidas pelo
nutricionista.
Os carboidratos refinados, como o açúcar, causam a compulsão alimentar. Quanto
mais são ingeridos, mais vontade de comer se tem. Eles disparam a secreção de
insulina, que aumenta a sensação de fome.
Trata-se de uma dieta de baixas calorias, numa quantidade abaixo do que o corpo
necessita por dia, o que leva o organismo a queimar a sua própria reserva de
gordura. Isso possibilita um emagrecimento rápido, além de disparar uma
mensagem de saciedade ao cérebro, o que torna a dieta menos sofrível.
As refeições são fracionadas. No almoço e jantar, por exemplo, primeiro é
servido um caldo quente que tem a função de frear a ansiedade com que a pessoa
chega à mesa. Depois, é servida uma salada verde e, a seguir, o prato
principal, que inclui uma proteína e um acompanhamento. A sobremesa pode ser
uma fruta ou uma gelatina, e um café.
Os grupos de apoio são mediados por terapeutas, entre psicólogos e
psicanalistas. São momentos em que não se fala de comida e sim de vida. O mais
importante é que o paciente se aproprie do conceito de limite e que ele deseje
trocar a comida por uma nova e positiva expectativa diante da vida.
Exercícios físicos orientados são indicados durante o tratamento. Depois que se
atinge o peso ideal, aos poucos, alimentos integrais e outros tipos de
carboidratos vão sendo reinseridos ao cardápio.
Fonte: Centro Terapêutico Máximo Ravenna
Digerindo as frustrações
Segundo a psiquiatra Maria Angélica Nunes, o transtorno é uma "expressão
do emocional no comportamento alimentar". Por isso, é necessário descobrir
os fatores psicológicos que desencadeiam o quadro compulsivo. "A ideia é
entender por que a pessoa reage assim e tentar mudar o pensamento
automatizado", explica a médica. Nesse momento, é preciso que o paciente
entenda o que é o transtorno, quais os gatilhos que levam a esse comportamento
e como interromper o ciclo de desorganização alimentar.
Durante o tratamento terapêutico, são estabelecidos novos mecanismos para lidar
com as frustrações. Nessa fase, é feita uma reconstrução da autoimagem, a
partir da identificação das próprias qualidades, das emoções e de como lidar
com elas. Junto à terapia, é necessário também orientação nutricional e, em
alguns casos, o uso de medicamentos de controle do impulso alimentar.
O TCAP é uma doença crônica, o que significa que a pessoa pode manter-se bem
por um tempo e eventualmente voltar a ter o comportamento compulsivo. Segundo
Maria Angélica, cerca de metade dos pacientes, após o tratamento, ficam totalmente
assintomáticos; cerca de 25% permanecem com resquícios e 25% não conseguem se
curar.
Com o objetivo de ajudar as pessoas a abandonarem maus hábitos alimentares,
surgiu o Comedores Compulsivos Anônimos (CCA). A organização começou em 1960,
em Los Angeles, nos Estados Unidos. O programa é inspirado nos Alcoólicos
Anônimos e segue o mesmo programa de 12 passos, só que com adaptações. O
objetivo não é buscar as causas que desencadeiam o comportamento compulsivo,
mas compartilhar experiências e alcançar a abstinência do comer compulsivo.
Apesar de não ser uma instituição religiosa, a recuperação é centrada nos
pilares espiritual, emocional e físico. "A compulsão pela comida é como
qualquer outra. É como a pessoa que bebe exageradamente e que usa drogas. A
comida descontrolada para nós é como uma droga", afirma Laís (nome
fictício), membro do grupo. Para ela, as reuniões são importantes para que o
comedor compulsivo não se sinta sozinho, já que normalmente ele se isola para
comer em excesso.
Fernanda (nome fictício), também membro do CCA, afirma que familiares e amigos
não conseguem entender que a sua relação com a comida é diferente da de uma
pessoa normal. Ela conta que é comum o estranhamento quando fala de sua
compulsão. Ela sofre com transtornos alimentares há mais de 15 anos.
"Admiti para mim, há muito tempo, que tenho problema com a comida."
Ela tentou acompanhamento com psicólogos, mas não deu certo. Há seis meses,
procurou o CCA. A jovem tem bulimia e alterna períodos de alimentação saudável
com episódios de excesso alimentar. Esteve acima do peso desde a
pré-adolescência, e desde essa época sofre com o efeito sanfona. "Minha
vida é um inferno em relação à comida", confessa. Em festas, já passou por
situações em que tentou provocar vômito e, depois, se sentiu frustrada e
envergonhada. Quando a vontade bate, a preferência é por alimentos ricos em
carboidratos, como pães e doces. Depois dos ataques, vem o arrependimento e a
culpa. "Me sinto um lixo", confessa.
É comum que comedores compulsivos prefiram alimentos específicos, especialmente
doces e carboidratos em geral. Por isso, durante a reunião, evita-se falar de
comidas, para não desencadear compulsão em outros membros. Muitas vezes, um
simples comentário pode atiçar o desejo. "Fantasiava muito. Ficava horas
deitada na cama pensando em como seria comer, sentindo o gosto da comida",
conta Lia (nome fictício), em tratamento, há 15 anos, no CCA.
A relação conturbada da moça com a comida começou cedo. "Aos 5 anos já era
obesa. Acho que já nasci compulsiva", conta. Seus pais também eram obesos
e ela repetia o comportamento que via dentro de casa. Oferecer comida era um
gesto de carinho da mãe. Muitas vezes, quando estava triste, ganhava algum
alimento com a justificativa de que ele a faria sentir-se melhor. Nas primeiras
reuniões no CCA, ela respondeu afirmativamente a 12 da 15 perguntas que
caracterizam o diagnóstico de comedor compulsivo, mas não se convenceu por
completo. "Fiquei muito tempo negando a doença", conta.
Sentimentos como raiva, ressentimento e medo motivam os ataques de Lia.
"Eu nem vejo. Já comi coisas em uma noite, em um momento de compulsão, que
eu acho que deveria ter comido em um mês. Isso me marcou muito", confessa.
Hoje, a estratégia é evitar a primeira mordida. Muitas vezes, amigas cozinham
pratos e ligam para convidá-la, mas ela evita. No início da compulsão, não
conseguia ficar longe dos doces. Depois do diagnóstico de diabetes, cortou o
açúcar da dieta e, após anos de tratamento, afirma que nem se lembra mais do
gosto das guloseimas preferidas, como doce de leite, doces com ovos e goiabada.
Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2012/11/18/interna_revista_correio,334176/o-peso-das-emocoes.shtml