domingo, 28 de outubro de 2012

Sobre 50 tons de cinza









 Somos vários tons de mulheres no universo erótico

Com gancho no sucesso de Cinquenta tons de cinza, a psicóloga Marília Santos, que mora em Londres, fala de mulher e sexualidade.

Londres é cinquenta tons de cinza, no céu e na terra. No céu, muitas nuvens. Na terra, várias londrinas lendo Fifty Shades of Grey. O livro começou a ser falado por aqui no fim do ano passado. E rapidamente virou um fenômeno global. É comum ver mulheres lendo como se fossem crianças empolgadas com o último volume do Harry Potter. Também virou moda contar que se está lendo o livro, compartilhar no Facebook,  Twitter ou adicionar ao Pinterest. Não são apenas mulheres jovens que têm tido contato com Christian Grey. Foi publicado há algumas semanas pela organização inglesa Calibre, que envia livros de áudio para pessoas com dificuldade de visão, que senhoras aposentadas de mais de 70 anos são as que mais encomendam a versão áudio de Cinqüenta Tons de Cinza.

Antes de eu ler o livro, ouvi a opinião de duas amigas inglesas. Uma havia amado. A outra…odiado! O mesmo com duas amigas brasileiras: uma só falava nisso, a outra só falava mal disso.

Resolvi conferir. Baixei a trilogia no Kindle. Li o primeiro livro e o achei legalzinho, mas mal escrito. E não gostei dos personagens. Li o segundo livro, mas pulei diversas páginas, pois minha sensação foi de que a autora copiou e colou o que já havia escrito antes. Quando passei para o terceiro volume perdi o interesse então, mais rebelde, comecei a pular capítulos. Não agüentava mais ouvir sobre a tal “deusa interior” de Anastácia Steele.

Os personagens são mesmo inconsistentes: Anastácia não convence com sua contrastante personalidade inocente e inteligente, assim como Grey, com sua atitude egoísta e controladora e seus conflitos infantis. Achei tudo forçado.  Para falar a verdade, o que eu gostei mesmo foi da trilha sonora. Esse livro vai dar um bom filme.

Pra muitos, o livro virou piada. Já ouvi gente falando de cinqüenta tons de cabelos, cinqüenta tipos de salmão e cinqüenta escovadas de dente. Um amigo me mostrou um site em inglês chamado Generator, que cria frases baseadas nas passagens do livro. Quando você clica na opção “gerar”, o site gera palavras ao acaso que, numa frase semelhante às descrições eróticas da historia, ficam engraçadíssimas.

Dou risada disso, mas sou consciente de que o livro foi um grande fenômeno no aspecto social (a risada aqui é séria). L.E. James definitivamente contribuiu para as mulheres se sentirem mais confiantes ao falar sobre literatura erótica.

Na época em que eu li Delta de Venus, da Anais Nin, uma escritora francesa de erotismo dos anos 40, eu não andava com o livro por aí. Não queria que as pessoas soubessem que eu o estava lendo. Se naquela época já existisse o Kindle, talvez Delta de Venus tivesse passeado por Porto Alegre, mas eu o limitei às quatro paredes do meu humilde quarto. Hoje em dia, com os e-readers, temos a opção do discrição. Mas o fenômeno da literatura erótica está indo além dos e-readers. As mulheres estão carregando os livros por onde andam. Elas podem, elas querem mostrar.

Vejo o universo feminino encontrando seu espaço num mundo que já foi tão modelado para o masculino. Que bom que E. L. James contribuiu favoravelmente com a emancipação da leitura erótica. Há mais por aí. Há poucas semanas, na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, houve uma venda incrível de livros de ficção erótica.  O livro S.E.C.R.E.T, de um canadense cujo pseudônimo é L.M. Adeline foi um dos livros mais vendidos e está sendo comparado ao Cinqüenta Tons de Cinza – embora mais desenvolvido literariamente. Além das novidades que estão aparecendo por aí, recomendo o que já está há algum tempo no mercado, como os livros franceses Delta de Vênus, da Anais Nin, que mencionei antes, e A vida sexual de Catherine M., da própria Catherine Millet. São bem escritos e os personagens bem mais interessantes.  

Sei que ao lerem minha crítica negativa de Cinqüenta Tons de Cinza, algumas mulheres dirão: gosto não se discute. E talvez essa seja mesmo a alma do negócio. Essa diversidade fará as editoras investir em livros. Que ótimo podermos discutir abertamente opiniões nessa área (online ou face to face) enquanto que a maioria das nossas mães e avós jamais poderiam. 

Pergunto-me se o mesmo acontecerá na indústria de filmes eróticos e pornôs.  A escritora e jornalista inglesa de quem sou fã, Caitlin Moran, diz que  a indústria pornô é um problema.  O filmes são voltados para o mundo masculino e extremamente mecânicos, como se as pessoas estivessem fazendo aula de aeróbica - só que nus. A mulher geralmente aparece mostrando que está gostando daquilo de uma forma exagerada, com gritos escandalosos que caberiam mais a um filme de terror do que em algo sensual e excitante.

Há na indústria de filmes eróticos poucos feitos especialmente para mulheres, como os da americana Candida Royalle. No entanto, eles geralmente são tediosos, estilo Cinderella ou Branca de Neve para adultos (com todo respeito a quem gosta de gata borralheiras e dos sete anões).  Poucos filmes feitos para mulheres mostram historias reais parecidas com as que vivemos, como os da cineasta sueca Erika Lust, que ganhou várias vezes o Feminist Porn Award, o Oscar desse gênero. Ela parece estar modificando a indústria, mas precisamos de mais mulheres se dedicando a essa área.

Muitos meninos da minha geração começaram a consumir pornografia no início da adolescência. É culturalmente aceito. Já as meninas? Pouquíssimas, se é que assistem. De um lado, meninos achando que sexo selvagem e brutal é a forma “certa” de transar. De outro, meninas fantasiando um amor romântico. Ultimamente, no entanto, tenho escutado que meninas adolescentes dessa geração têm assistido mais a vídeos pornôs sozinhas (devido ao crescente e fácil acesso a vídeos na internet). Mas é árduo aceitar que ambos estão se educando por essa via, pois o sexo que é apresentado ali não é informativo e apropriado para quem está iniciando sua vida sexual cheio de duvidas. Se é sabido que adolescentes vão assistir a vídeos pornô de qualquer forma (pois são adolescentes e a curiosidade sexual impera), deveriam ter acesso a algo que ensine mais sobre a sexualidade feminina. As meninas acabam muitas vezes se forçando a fazer coisas que não querem, tendo como referência a atuação das atrizes pornô.

Não poderia ser diferente? Há muitos educadores sexuais, psicólogos e outros profissionais refletindo mais sobre isso atualmente, mas ainda não vejo muitas mudanças. Acredito que as próximas gerações de mulheres terão cada vez mais opções e informação útil nessa área, mas entendo que para que isso realmente ocorra precisamos ser menos resistentes em falar no assunto.

Percebo as mulheres de hoje cada vez mais verdadeiras em relação à sexualidade. Vejo que há um interesse real em compartilhar o que é ser mulher, com menos machismo, mais humor e curiosidade. Observo isso entre amigas brasileiras e inglesas, assim como amigas de outras nacionalidades ocidentais. No livro Como ser Mulher, que há pouco foi traduzido para o português, Caitlin Moran discute vários assuntos do universo feminino, de seus treze anos até a idade adulta. É um manifesto divertidíssimo em que ela relata sua experiência em relação a assuntos como masturbação, estética, relacionamentos, trabalho, filhos e aborto, encorajando outras mulheres a questionar suas próprias ações e valores. É uma feminista inglesa com um ótimo senso de humor. Quando digo “feminista” aqui me refiro a tal palavra não como uma guerra de sexos, ou uma tentativa de querer afirmar que a mulher é superior ao homem.  Talvez boa parte das brasileiras discorde da opinião de Caitlin em alguns temas. Depilação, por exemplo, ela considera um sofrimento desnecessário.

Percebo também que, para muitos homens, é um alívio ter uma mulher ao lado que seja honesta no que realmente quer, que se interesse em investir em sua sexualidade assim como em desenvolver seu cérebro. Isso, de certa forma, alivia a cultura machista, assim como nossa cultura de ser muito feminina, mas pouco feminista. Casais que vivem relações onde os papeis são mais flexíveis parecem ser mais saudáveis.

Para criarmos mudanças positivas, com direitos comuns, e para que a sexualidade feminina seja mais bem compreendida, temos que ter menos medo de debater sobre temas como a indústria erótica e pornô, onde ainda estamos jogando como reservas e não como titulares. Se levarmos isso a sério, estaremos fazendo um bem enorme às mulheres de hoje e às futuras gerações de meninas. Espero que, ao ler Cinqüenta Tons de Cinza, esses milhões de mulheres descubram cinqüenta (ou mais) tons de mulheres dentro de si. Se um dia Freud perguntou o que as mulheres querem, acho que agora podemos responder: não saibamos tudo o que queremos, mas estamos em processo de criação daquilo que já sabemos que queremos”.

De certa forma, sempre foi um pouco assim, não?

Fonte: http://colunas.revistaepoca.globo.com/mulher7por7/2012/10/27/somos-varios-tons-de-mulheres-no-universo-erotico/

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