domingo, 23 de setembro de 2012

Opinião - Hanne Blank: "Não há só duas orientações sexuais"



Hanne Blank: "Não há só duas orientações sexuais"

A historiadora diz que a definição do conceito de hétero e homossexualidade aumentou o preconceito ao enquadrar os comportamentos sexuais

Por Tonia Machado

A historiadora americana Hanne Blank, de 43 anos, viveu um relacionamento de 15 anos com uma pessoa que, geneticamente, não é homem nem mulher. A história da constituição cromossômica XXY de seu parceiro e o fato de ele não se encaixar, cientificamente, em nenhuma das categorias sexuais existentes é contada por Hanne no início de seu novo livro. É sua maneira para introduzir uma ideia polêmica. Em Straight: the surprisingly short history of heterosexuality (Hétero: a curta e surpreendente história da heterossexualidade), sem edição no Brasil, ela diz que a criação das palavras “heterossexualidade” e “homossexualidade”, no século XIX, mudou nosso comportamento. “Até então, não se pensava se alguém era gay ou hétero”, diz.

ÉPOCA – É possível identificar com precisão quando as palavras hétero e homossexualidade foram criadas?
Hanne Blank –
A definição desses termos foi uma ideia ocidental que, como muitos outros pensamentos, foi transmitida a outras partes do mundo pelo imperialismo cultural. As duas palavras foram criadas numa carta escrita, em maio de 1868, pelo jornalista austro-húngaro Karl-Maria Kertbeny. Ele se colocava contra uma lei alemã de 1851, que punia homens que mantivessem relações com outros homens. Segundo ele, não era justo condenar o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, quando os mesmos atos físicos eram realizados por pessoas de sexos diferentes sem que houvesse nenhuma consequência legal.

ÉPOCA – Há referências milenares a comportamentos homossexuais. Por que a demora em criar uma definição?
Hanne –
É claro que a hétero e a homossexualidade sempre existiram, mas, simplesmente, não eram identificadas. Essa é a questão crucial. As pessoas não pensavam se alguém era gay ou heterossexual e se esse fato fazia dele um tipo diferente de ser humano. Todo mundo sabia que havia comportamentos sexuais diferentes, mas não existia a noção de orientação sexual. Alguém poderia ter desejos sexuais diferentes ou envolver-se em diferentes tipos de atos sexuais. Esses atos poderiam ser considerados lícitos ou ilícitos, castos ou pecaminosos. Mas esses juízos de valor eram feitos sobre desejos e atos específicos, nunca sobre a pessoa. Isso só aconteceu com a criação da palavra.

ÉPOCA – Por que a criação dos termos transferiu valores antes associados a desejos sexuais para a pessoa?
Hanne –
Diferentemente dos animais, ser heterossexual para um humano envolve muito mais que o comportamento sexual entre machos e fêmeas. Os seres humanos têm um aparato social enorme ao redor de sua sexualidade. Não se trata somente de genitálias ou do que você faz com elas. Há um enorme pacote de atitudes que inclui desde a definição do que é sexy para um homem e para uma mulher até casar, ter filhos, assumir responsabilidades na administração da família. Até a definição de amor está associada à heterossexualidade. Para nossa cultura, é natural que, se você se sente atraído por alguém do outro sexo, terá prazer com ele e vai querer estar com ele. A criação de um termo conseguiu condensar e traduzir numa palavra todo esse aparato social em torno da sexualidade, partindo do tipo de ato sexual. É muito conveniente e fácil usar uma única palavra que signifique, sustente e contenha tantas expectativas, tradições e presunções sobre as pessoas e como elas deveriam se comportar. Se, todas as vezes em que fôssemos falar de heterossexualidade, tivéssemos de fazer uma grande lista sobre tudo o que ela envolve, ficaríamos nisso o dia todo!

ÉPOCA – O mundo era mais amigável aos gays até o século XIX, antes de Kertbeny criar os termos hétero e homossexualidade?
Hanne –
Antes de 1868, o comportamento das pessoas em relação à heterossexualidade era diferente. Houve lugares e épocas em que o sexo entre homens era aceito. Não era considerado um problema. Um exemplo muito famoso é a Grécia Clássica. Durante a era medieval, também havia bastante homossexualidade feminina e masculina na Itália. Mesmo sendo um país bastante católico, muitos homens faziam sexo com outros homens. Um exemplo de como isso era comum: em 1403, em Florença, os padres decidiram abrir um bordel municipal para que os homens parassem de ter relações homossexuais e se relacionassem com prostitutas. Isso mostra que a Igreja certamente não aprovava a homossexualidade e que a cidade poderia estar incomodada com isso. Mas, claramente, havia muita gente que não tinha problema em praticar sexo homossexual. O tabu era assumir o papel passivo, porque equivalia a dizer: “Sou uma mulher, porque sinto prazer como uma”.


ÉPOCA – Em sua opinião, a criação de palavras para definir gays e héteros reforçou o preconceito?
Hanne –
Há ideias tão profundamente entranhadas na maneira como construímos nossa vida que raramente as questionamos. Elas estão lá desde que nascemos. Foi isso que a criação dos termos fez com a orientação sexual. A partir do momento em que a heterossexualidade se tornou um consenso, passamos a não questioná-la. Nós a enxergamos como algo normal sobre o qual não precisamos falar – é um conhecimento que temos e presumimos ser evidente. O conceito de hétero e homossexualidade não foi criado com base em princípios científicos, mas sim sociais.


ÉPOCA – A senhora acredita que, se essa definição partisse da ciência, a homossexualidade seria bem-aceita pela sociedade?
Hanne –
A ciência tem muita influência e muita autoridade perante a sociedade. E essa é uma das razões de ela continuar procurando evidências físicas para a sexualidade ou a orientação sexual. Seria muito conveniente se a ciência dissesse: “Isso é o que faz com que alguém seja homossexual. Agora sabemos de onde vem”. A partir daí, teríamos uma resposta para o questionamento de por que alguns querem uma coisa e outros querem coisas diferentes. Se houvesse alguma resposta física conveniente para essa questão, então não precisaríamos mais perguntá-la.

ÉPOCA – A ciência não deu sua contribuição para o preconceito ao considerar, até 1977, a homossexualidade como uma doença mental?
Hanne –
Isso começou com o livro Psycopathia sexualis, de 1886. Ele catalogava os diferentes tipos de desvios e degenerações sexuais. Foi usado principalmente nas esferas legais, para ajudar os profissionais da Justiça a identificar esses comportamentos. Nesse livro, o termo “heterossexual” foi usado como uma forma de comparar o que era uma degeneração e o que não era. O comportamento “heterossexual”, ou “normal sexual”, era todo aquele que não estivesse no livro e envolvesse a relação sexual entre um homem e uma mulher feita pela penetração do pênis na vagina. Qualquer coisa diferente disso era uma forma de degeneração ou doença.

ÉPOCA – Esses parâmetros aumentaram a pressão sobre os
homens para provar sua “normalidade”?
Hanne –
Havia, e ainda há, uma grande pressão para eles demonstrarem seu valor. Uma das maneiras como os homens historicamente provaram isso, especialmente desde o século XIX, foi mostrando que são sexualmente normais, saudáveis, não degenerados, que têm os mesmos desejos que todos os outros homens, que são “um dos caras”. E essa se torna uma maneira muito importante de afirmar sua identidade e autoridade, como homem merecedor de fazer parte desse grupo.

ÉPOCA – É difícil acreditar que a criação de uma palavra seja capaz de alterar radicalmente a percepção da sociedade. Há um contexto histórico que ajude a explicar essa transformação?
Hanne –
No fim do século XIX, houve uma intensificação da urbanização. Nas cidades, pessoas com diferentes hábitos, culturas e condições financeiras passaram a conviver pela primeira vez. A elite passou a culpar as classes menos instruídas pelos problemas da cidade: crimes, prostituição, alastramento de doenças venéreas e até mesmo pela feiura das partes pobres das cidades. Essa convivência entre classes gerou uma distorção nos pensamentos evolucionistas de Darwin. Passou-se a acreditar que os pobres eram seres menos evoluídos. Junto disso tudo também surgiu a ideia de que a sexualidade das pessoas, o que elas desejam e o que fazem também são parte do que as faz evoluídas ou não.

ÉPOCA – A senhora acredita que não é possível criar uma definição para heterossexualidade?
Hanne –
Existem muitas definições, e elas mudam com o tempo. Como historiadora, procuro analisar o comportamento das pessoas ao longo da história. Posso garantir que mudam muito. A sexualidade humana se dá de maneiras diferentes. O fato de querermos nos relacionar com outros seres humanos, independentemente do sexo, é algo normal. Como existem muitos tipos, e tão amplos, de experiências, não acho que seja possível definir tão estritamente a orientação sexual em somente duas categorias.

ÉPOCA – Como a senhora define sua orientação sexual?
Hanne –
Não sou heterossexual, nem homossexual, nem bissexual. Vivi 15 anos com uma pessoa que, geneticamente, não é homem nem mulher. E não há um termo para alguém que esteja num relacionamento com uma pessoa que não é homem nem mulher. Gosto de masculinidade, mas não necessariamente em alguém que seja biologicamente um homem. Em minha vida, já me relacionei com pessoas de todos os tipos de biologia. Do que gosto e o que me atrai é a masculinidade. A biologia da pessoa não é um problema para mim.


Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/09/hanne-blank-nao-ha-so-duas-orientacoes-sexuais.html
 

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