Para psicólogos, transexualismo não é doença
Carolina de Andrade
Colaboração para a FOLHA
Colaboração para a FOLHA
A visão do transexualismo como doença é
controversa. Uma ação mundial tenta retirá-lo dos manuais de doenças da OMS e
da Associação Americana de Psiquiatria.
A campanha "Stop Trans Patologization"
["Parem de patologizar os trans"] tem o apoio, aqui, do Conselho
Federal de Psicologia. Segundo a psicóloga Ana Ferri de Barros, que coordena a
comissão de sexualidade e gênero do conselho paulista, o acesso à cirurgia de
mudança de sexo pelo SUS não deveria depender do diagnóstico.
"Defendemos a despatologização das identidades
'trans' e também o acesso universal à saúde", diz.
É também a posição da cientista social Berenice
Bento, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. "Não há
exame que ateste a transexualidade [termo usado por quem é contra a
patologização]."
Para Bento, gênero é construção social e o
diagnóstico do transtorno na infância, absurdo: "Quem precisa de
tratamento são os pais".
Já na visão do psicanalista Roberto Graña, o
transtorno deve ser tratado como uma perturbação no desenvolvimento. Ele
considera o transexualismo uma recusa em aceitar o real, o sexo biológico e,
portanto, uma doença. Diz ainda que tratamentos hormonais são inúteis e
perigosos na juventude.
A psicanalista e colunista da Folha Anna
Veronica Mautner afirma ser "muito difícil" estabelecer limites entre
as origens do distúrbio, hormonais, comportamentais ou de outra ordem.
"Cada caso é um caso."
Transtorno de identidade sexual na
infância divide especialistas
Carolina de Andrade
Colaboração para a FOLHA
Colaboração para a FOLHA
Aos quatro anos, um menininho inglês que se chamava
Jack disse para a mãe: "Deus cometeu um erro, eu deveria ser uma
menina".
Aos oito, ele mandou um e-mail para as pessoas da
escola onde estudava (e sofria bullying) avisando ser "uma menina presa em
um corpo de menino". E passou a se vestir como garota. Aos dez, disse à
mãe que se mataria se começasse a "virar homem".
Aos 11, Jack teve uma overdose e fez outras seis
tentativas de suicídio antes de completar 16 anos.
Como a lei inglesa não permite cirurgia de mudança
de sexo antes dos 18, Jack foi operado na Tailândia, aos 16.
A história de Jack, que a rede de TV britânica BBC
exibe hoje, mostra os contornos e as dores do transtorno de identidade sexual
na infância. Jackie Green tem agora 19 anos, é modelo e foi a primeira
finalista transexual do concurso de Miss Inglaterra.
A OMS define o fenômeno como o desejo, manifesto
antes da puberdade, de ser (ou de insistir que é) do outro sexo. O termo "transexualismo"
só é usado para adultos.
Não há estatísticas de incidência do fenômeno.
Entre pessoas acima de 15 anos, estima-se que um a cada 625 mil seja
transexual, segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh (leia entrevista abaixo).
De acordo com Carmita Abdo, do programa de estudos
em sexualidade da USP, a experiência clínica mostra que só um terço das
crianças com o transtorno serão transexuais.
Na visão da psiquiatria, transexualidade não é
escolha, como querem alguns setores. Como psiquiatra, é claro que Alexandre
Saadeh defende o diagnóstico de transtorno de identidade sexual na infância
--embora critique seu uso estigmatizante.
Professor da PUC-SP e coordenador do Ambulatório de
Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas
de São Paulo, ele conta como a medicina caracteriza o problema, à luz das
últimas pesquisas.
*
Folha - Como saber se a criança sofre de transtorno
de identidade de gênero?
Alexandre Saadeh - Pode ser que a
criança esteja só brincando de assumir um papel, o que é comum entre os quatro
e os seis anos, faz parte do desenvolvimento. Para constatar o transtorno é
preciso que o comportamento ocorra por tempo prolongado.
Quais são os indícios?
Não é só o uso de roupas ou a criança se chamar por
nome do outro gênero. Ela apresenta outros sinais: fica deprimida, irritada e
agressiva se é obrigada a se comportar segundo o sexo anatômico. A necessidade
de ser tratada como se fosse do outro gênero é constante. Muitas percebem que o
comportamento incomoda os pais, aí o escondem. Os primeiros indícios surgem na
infância, mas são raros os casos em que é claro desde o início se tratar de
transexualismo.
Nem toda criança com o transtorno fará cirurgia de
mudança de sexo quando adulta. Mas todo transexual teve o transtorno. A criança
deve ser avaliada por profissionais para evitar diagnósticos equivocados.
Quais são as causas?
Há evidências de que a diferenciação cerebral
intrauterina pode ser influenciada por níveis de andrógenos [hormônios que
desenvolvem as características sexuais masculinas] circulantes na gestação, o
que pode gerar um cérebro masculino ou feminino, independentemente da anatomia
já definida. Apesar da importância do ambiente e da cultura, não há evidências
de como esses fatores se acrescentam aos fenômenos biológicos.
Quais são as alternativas após o diagnóstico da
criança?
Pais e profissionais devem ajudar a criança a
vivenciar o transtorno e, se for o caso, superá-lo; se não, a vivenciá-lo de
maneira integral, sem censura. Não é fácil para nenhum pai ou mãe se adaptar a
essa transformação, mas quando se pensa em respeito e aceitação pela diferença
e por quem é de verdade o filho ou filha, fica mais palatável.
No Brasil, a cirurgia só pode ser feita após os 21
anos, mas o uso dos hormônios pode começar a partir dos 18. Se tivermos certeza
de que o adolescente já é um transexual, é possível tentar autorização junto ao
Conselho Federal de Medicina para começar o tratamento hormonal antes.
Os efeitos do tratamento hormonal para impedir a
puberdade são reversíveis?
Há a possibilidade de se bloquear o desenvolvimento
das características masculinas ou femininas do adolescente, ou já fazer o
tratamento hormonal específico para o gênero desejado. Alguns efeitos são
reversíveis, outros não, por isso a controvérsia e a responsabilidade da
indicação desse tipo de intervenção, o que aumenta mais a importância do
diagnóstico.
Sou a favor do bloqueio e do tratamento hormonal,
já que impedem que a pessoa passe pelo sofrimento de desenvolver caracteres
sexuais de seu sexo anatômico e não de sua identidade de gênero.
A visão do transexualismo como transtorno é
unânime?
Para os [profissionais] que se preocupam em se
atualizar nas pesquisas, é, sim. O problema é confundir transexualismo e
homossexualidade ou tratar como doença mental. É um transtorno do
desenvolvimento cerebral. As explicações psicológicas clássicas não conseguem
mais caracterizar o fenômeno. As ciências humanas tendem a ser contra o
diagnóstico e o consideram estigmatizante, do que discordo. Pode haver esse uso
do diagnóstico, mas não é essa a finalidade.
Qual sua opinião sobre os movimentos pela
"despatologização" do transexualismo?
Acredito no diagnóstico como delineador, não como
estigmatizante. Como psiquiatra, não posso achar que o transexualismo seja
questão de escolha. É questão de desenvolvimento embrionário, relacionada ao
desenvolvimento cerebral na fase de diferenciação entre cérebro masculino e
feminino.
Como vê o "gender-neutral parenting",
essas tentativas de criar uma educação sem estereótipos sexuais, a exemplo de
uma escola na Suécia que não usa "ele" ou "ela" para se
referir às crianças?
A sociedade funciona com diferenciação de gêneros.
A criança terá contato com os gêneros cedo ou tarde e isso pode gerar confusão.
Fonte:http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1187730-transtorno-de-identidade-sexual-na-infancia-divide-especialistas.shtml
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