O CONTRATO
Acharam que seriam felizes para sempre...
*Ricardo Lima
Eles escolheram cuidadosamente a data, a hora, o local, a comida, os convidados e padrinhos, registraram tudo em vídeo,
a champanhe brindou, a banda tocou... e deram
um nome a isso: casamento. Só não imaginavam
que essa
história tinha o seu roteiro traçado
há
muito tempo. Já na fase da conquista amorosa, inevitavelmente
ainda embriagados
por uma boa dose de idealização, todos assinam um contrato que apenas em parte é consciente.
Porém, outras partes são desconhecidas
pelos amantes - sabe aquelas propostas com letrinhas minúsculas de
rodapé? - e que, no afã da paixão, são ligeiramente rubricadas sem serem cuidadosamente avaliadas.
Entretanto, com
passar do tempo e
na convivência do casal, mais cedo ou mais tarde vão operar no casamento
podendo
causar estranheza e, claro, problemas. A
sensação de que algo não condiz com as expectativas
criadas no início da relação choca-se com a constatação
de
que certas coisas não foram ‘combinadas’
lá atrás... E,
na
distância entre o que se espera do relacionamento e o
que ele de fato oferece surgem as insatisfações conjugais. Mas
onde
começa
tudo isso? Para
se
decifrar esse
enigma penso que seja necessário fazer uma viagem ao
passado e remontar a cena da ‘atração à primeira vista’. É nesse momento que começa
a se esboçar, ainda que de
forma muito particular, a minuta
desse contrato. Por exemplo, algumas necessidades inconscientes associadas
a intensos desejos presentes na vida da pessoa à época
do
primeiro encontro podem sugerir que se filiar ao outro
representa uma ‘grande oportunidade’. Do quê?
De
se distanciar daquele
convívio complicado na casa dos pais;
de
realizar o sonho da maternidade;
de
buscar uma vida confortável sob a provisão de um cônjuge. Não, esses não
são
fragmentos de um enredo de novela. Há pessoas que se casam primordialmente para realizar um ou
mais desses objetivos. Nesses casos o prognóstico
é ruim, pois a união com o parceiro tem apenas a função de veículo para a realização do projeto individual e urgente. Não se
trata de uma construção conjugal saudável,
um
tratado claro que contempla o desejo, as necessidades e o
desenvolvimento de ambos, tanto como pessoas quanto como casal. Daí os casamentos
que ‘perdem a função’
precocemente, provavelmente quando a vida na
nova casa se estabelece (é isso mesmo, já na volta da lua-de-mel!) ou quando a gravidez se apresenta cedo – geralmente, de
forma inesperada. Nos relacionamentos
que resistem a essas “armadilhas” iniciais, ou nos que se apoiam em outros motivos, é possível observar o desenvolvimento individual dos cônjuges, as transformações de suas ideias,
desejos e até de valores, ou seja, a elaboração
de
novas cláusulas subjetivas.
Isso
leva a relação conjugal a outro
estágio que, a meu ver, apresenta uma das tarefas mais
complexas do casamento: adaptar as expectativas individuais às mudanças que a vida conjugal/familiar apresenta, em assuntos como dinheiro, prazer, carreira,
responsabilidades, etc. Atribuo essa dificuldade ao fato de que esse processo passa pela capacidade de se tomar conhecimento
da situação, assumir a necessidade dessas transformações, refletir, e, primeiramente, rever a minuta
do
contrato de si com si mesmo para depois, se possível, levá-la para a negociação com o parceiro. É difícil
também
porque requer uma boa dose de autoconhecimento, intimidade conjugal e desprendimento (pela árdua tarefa da renúncia) suficientes
para tornar hábito rever, discutir e re-significar o casamento. Tenho visto no trabalho com
casais que a falta dessas habilidades
paralisa
a relação, o
que me chega sob a forma da queixa: o casamento caiu numa rotina, numa ‘mesmice’. Interpreto isso como sinal
de que ele
está engessado, ancorado em partes do
contrato que por
mais recentes que sejam ainda não foram dialogadas e, portanto, já estão obsoletas, carentes da
adaptação necessária à velocidade das mudanças da vida.
Nesses casos, a relação
‘sobrevive’ sob um roteiro
burocrático, protocolar, veladamente insatisfatório... num
terreno fértil para o aparecimento
de
um dos fatores mais nocivos
às
relações: o pressuposto.
Digo nocivo pois ele não consta do contrato... é algo
como uma ilusão,
formada
por
crenças atuantes apenas na imaginação de cada um... certezas que se têm pra si e acredita-se,
inegavelmente,
que valem para o outro também. Alguns clássicos pressupostos dos meus
arquivos: “ela
vai respeitar os
meus hobbies e amigos até por que eu os tinha bem antes de
conhecê-la”;
“a admiração dele
por
mim
só
tem a melhorar com o passar dos anos”;
“se eu trabalhar para
contribuir com as despesas
do
lar, ele vai reconhecer e valorizar isso me ajudando
mais nas tarefas domésticas”;
“apesar de termos alguns valores diferentes, ela vai entender o meu jeito de educar nossos filhos”. Assim,
como se trata de algo não comunicado,
discutido e negociado
com o parceiro é pouco provável que ele
contribua para a sua realização.
Isso
dá margem ao
aparecimento
da
incompreensão, do melindre, da raiva... inconformismo... agressão mútua.
Enfim, pode
parecer
que o casamento, pelo ângulo aqui apresentado, é um
jogo condenado
por suas próprias regras, mas não é bem assim. Entendo
ser, como todas as outras parcerias que
constituímos na vida, uma oportunidade real de sermos
felizes, alguns dias mais, outros menos...
com muito
esforço, boa vontade e dedicação.
Ah!
Quanto ao certificado garantia de felicidade, se o encontrarem
em algum contrato, por favor, me enviem uma cópia.
* Autor: Ricardo
Lima,
psicólogo clínico, doutor
em psicologia do desenvolvimento humano,
marido e pai atento
às diversidades e o que aprender com elas.
ricardo.lima@usp.br
Prof. Dr. Ricardo Lima
Psicoterapia e Orientação Vocacional
(11)3675.7097
(11)985.626.644
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