ESSE PROBLEMA NÃO É MEU!
As questões conjugais e os sintomas dos filhos
Prof. Dr. Ricardo Lima*
Olhar para os sintomas
dos filhos como reflexos do que se passa na vida conjugal dos
pais é desafiar a visão tradicional
da ‘criança problema’, do ‘aluno preguiçoso’ ou mesmo da ‘aborrescência’. A partir das
experiências no
trabalho clínico com queixas referentes aos problemas de
aprendizagem, tive a oportunidade de aprender com meus jovens pacientes que,
em muitos casos, eles eram portadores
de sintomas
oriundos das dinâmicas conjugais dos pais. Então, comecei a me
interessar e investir esforços
com os casais, visando
promover um melhor entendimento dos processos que envolvem a vida conjugal e seus reflexos no desenvolvimento dos
filhos.
E tenho notado que, muitas vezes, as dificuldades manifestadas pelos
filhos funcionam como
uma
‘cortina de fumaça’ para os conflitos familiares e conjugais. Isto é,
quanto mais o comportamento de
um filho se apresenta como ‘problema’, a atenção
da família
se volta
para esse
foco, fazendo com que os pais/casais não tenham que olhar para as próprias
questões mal resolvidas.
É claro que o surgimento de sintomas
comportamentais
ou educacionais numa criança não se limita a essa causa, mas
vejo que esse fato, ainda desconhecido
por muitas famílias, atua como força
criadora/mantenedora das dificuldades de aprendizagem.
Quando isso é percebido no
consultório
costumo fazer a seguinte pergunta para os pais: “como está o casamento de vocês?”. Esse é um momento crucial no trabalho clínico,
pois não é raro encontrar cônjuges
que há tempos estão insatisfeitos em diversos aspectos do
casamento;
casais que utilizam
a comunicação de forma rasa e
burocrática, isto é, como
ferramenta útil para resolver
problemas do dia a dia, mas ineficiente para expor seus sentimentos; parceiros sem intimidade, portanto sem conhecimento mútuo, entre outras questões. Outro fenômeno
que observo é a maior incidência
de mulheres que procuram
expor estas situações. Dizem,
recorrentemente, que se sentem em
conflito entre ter uma vida
feliz e
dar
sentido aos
seus desejos (já que os filhos estão crescendo) e ainda ter que
suportar
as tarefas
de mãe-esposa-profissional impecável sem
a ajuda e
a admiração de seus maridos.
Quando questionados, muitos maridos relatam não entenderem a insatisfação das
mulheres já que
elas têm os filhos - segundo eles ‘se elas se realizam como mães, não precisam
de mais nada na vida’ - uma casa
confortável, um homem trabalhador e
provedor, entre outros argumentos. E,
nesse impasse, a comunicação
do casal fica comprometida
pela dificuldade de negociar as
diferenças entre
o que se espera da
relação e
o que ela realmente pode proporcionar a cada um dos cônjuges.
Não considerar e se aprofundar nessa questão (é
isso mesmo... discutir a relação!) empobrece um aspecto importante no desenvolvimento humano,
do casal e da família: o
auto-conhecimento. Sem essa consciência surgem dificuldades em assumir, aceitar e lidar com as diferenças, fazendo com
que em muitas famílias
isso se torne um assunto... digamos... proibido, veladamente censurado. Muitos pais/casais com
quem converso são
inteligentes, bem sucedidos profissionalmente, mas inábeis em lidar
com questões emocionais por carecerem de auto-conhecimento. Resultado: o silêncio. Aqui ocorre
o que eu chamo
de
não dito, ou seja, o que
existe nos relacionamentos
mas fica camuflado,
discretamente ignorado. Por exemplo: “sinto que o meu marido não me deseja mais”
ou “queria que
os
meus pais se interessassem mais pelas
coisas que eu gosto”.
Ignorar uma questão emocional significa deixá-la operar silenciosa e inconscientemente na
própria vida
e na família. Seria como
cultivar uma mensagem subliminar do tipo: “aprenda, questione e comporte- se apenas dentro
daquilo que suportamos, do
que damos conta... o que está fora desse alcance, não serve, não pode, deixa pra lá.” Oras, vivemos num mundo de diversidades e a aprendizagem passa justamente
pela análise crítica das diferentes formas de pensar, sentir, se comportar... Assim, o processo de
aprendizagem fica seriamente
comprometido pois
reduz o aprender a uma série de memorizações
de conteúdos para
atingir resultados padronizados e análogos às limitações emocionais da
família.
Digo questões emocionais pois
se referem
não
somente
ao
que
é avaliado pela educação formal,
mas principalmente ao auto-conhecimento.
Nesse contexto,
a riqueza interior do ser humano - que
tem na
diversidade
uma
de suas melhores qualidades - fica reprimida, censurada, oculta. A auto-estima não
se fortalece, pois não
há uma
construção do
amor
próprio, mas sim a reprodução
do que outro determina ser o amor correto, o
afeto permitido.
O não dito funciona como
‘peso
morto’, ancorando e dificultando
o desenvolvimento; a aprendizagem, como fenômeno importante
para a constituição de indivíduos
(seres únicos,
ímpares), não
pode ser
vivida
de forma autônoma e autêntica, explicando as dificuldades de alguns
jovens em assimilar, administrar e gerar conhecimentos sozinhos;
a criatividade,
como manifestação do ‘fazer diferente’, não vale,
é censurada... nivelando
a vida
por baixo... e acaba por emburrecer,
desinteressar... entristecer.
Para pedir ajuda, alguém
na família tem que denunciar que algo está
errado. Infelizmente, tenho
constatado que
isso
ainda
fica a cargo dos filhos...
* Autor: Ricardo
Lima,
psicólogo clínico, doutor
em psicologia do desenvolvimento humano,
marido e pai atento
às diversidades e o que aprender com elas.
ricardo.lima@usp.br
Prof. Dr. Ricardo Lima
Psicoterapia e Orientação Vocacional
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